Crônicas





UMA SELFIE COM DEUS

 Ana Trajano

                Ontem, enquanto preparava-me para fazer uma selfie, te ouvi cochichar ao meu ouvido: "veja além da lente, veja além da tela de cristal." Aquietei-me para escutar, pois sabia que ias me dizer mais. "A tua face, assim como  o teu corpo, é apenas uma porta espelhada que só reflete a si mesma. Enxergue além da porta! Abra-a!

                "Você, certamente, se assustará com medo do escuro lá dentro, mas a luz nunca vencerá as trevas enquanto portas estiverem fechadas. Já imaginou uma porta na frente do sol? Alguém teria que removê-la se quisesse a luz. Você quer a luz! Busca-a com tanta sede...eu sei!

                "Eu sou a luz e estou com você. Para isso vim ao mundo, para ser a luz do mundo, mas vocês ergueram-me portões, inúmeros portões. O pior deles é aquele que os esconde de si próprios. Esse, para muitos, é quase irremovível. Vocês se olham no espelho, nos celulares, fazem suas selfies, mas veem apenas o portão. São narcisos numa poça d'água. Nunca entenderam que o que veem não é real. É apenas uma imagem projetada pela sombra da luz que vocês esconderam.

                "Venham a mim! Busquem-me no presépio, na cruz, ou no sepulcro de onde eu removi a pedra que os separava da luz. Removam-na de dentro de vocês. Não prefiram a escuridão da morte. Iluminem-se como iluminam suas casas no Natal. Descubram o castelo iluminado que são. Descubram a linda face de luz que vocês têm e chamem-me para fazer uma selfie."






OS MULTIS QUE SE DÃO

Ana Trajano      

                Muitas pessoas sofrem com algum tipo de fobia: inseto, altura, elevador... A minha é de multidão. As raríssimas vezes que já me vi no meio de uma senti-me apenas parte invisível da perna de um gigante. Eis o que me assusta: eu não sinto minha face numa multidão, não vejo a cara de ninguém. Sou apenas minúscula parte de um número. E nunca fui boa em matemática.

                Isto é fato: a multidão não tem face, inexiste-lhe uma personalidade permanente. Ela é multi - o multi que se dá, que se oferece a algum propósito, também ele impermanente. Ela é, enfim, os multis que se dão. Apenas os números identificam a multidão: dezenas de milhares, centenas de milhares... Isto porque apenas as cifras mostram o sucesso ou o fracasso do seu objetivo.

                Para a multidão o que vale é o peso: quanto mais rica em algarismos melhor. A multidão magra é motivo de pena e tristeza para uns e de festejo para outros. Já a grande, forte, robusta é sempre motivo de comemoração: a certeza de que o plano de manobra funcionou.

                Toda multidão é carente de alguma coisa. Independente do motivo da sua carência, ela é, ao mesmo tempo, extremamente frágil e terrivelmente poderosa. Qualquer que seja ela, porém, traz essas duas características: fragilidade e poder.

                Se jogarmos um olhar mais crítico sobre uma multidão, veremos que ela é um enorme amontoado de pessoas com alguma carência em comum: espiritual, ou de diversão e entretenimento, ou de busca pela satisfação política, econômica e social. Isto é, são amontoados lutando, ou  buscando  satisfação num desses campos da vida humana.

                Toda forma  de carência deixa o indivíduo extremamente frágil, vulnerável. Nisto está o duplo poder da multidão: ela eleva o indivíduo fragilizado ao poder do coletivo, do único ao multi. Dessa forma, o indivíduo ganha em força, mas apenas na aparência, já que a multidão também é extremamente frágil à manipulação. O rebanho, dependendo do pastor, pode ir ao céu ou ao inferno.



DIGITALIZAR SENTIMENTOS

Ana Trajano

Vivemos um tempo de desafios, onde o principal é o de permanecer ileso a um inimigo invisível e mortal. Por conta dele, tudo à nossa volta parece ser um desafio: adaptar-se às mudanças de um tempo que nos tira o dinamismo do coletivo para a monotonia do privado; a alegria do presencial para a sisudez  do remoto; o aperto de mão pelo toque frio dos cotovelos; o calor do abraço à limitação de uma palavra no final das mensagens do zap.

Uma palavra que sempre foi indesejada nas relações humanas, tornou-se agora a palavra de ordem: distanciamento. O que antes podia representar a morte e o indesejado de uma relação, hoje é enaltecido por representar a vida. Distanciamento. O amor é medido não pela proximidade, mas pelo distanciamento. Distanciar-se é o salva-vidas. E distanciando-nos do outro, vamos nos distanciando também daquilo que melhor caracteriza a nossa condição humana: o afeto, o carinho, o compartilhar. Isto é, vamos nos distanciando de nós mesmos, do que nos define e diferencia. 

Quão desumano é tudo isso! O parente que mora ali tão perto mas não podemos visitar; os entes queridos que partem e dos quais não podemos nos despedir;  o sorriso acabrunhado atrás da máscara;  o abraço contido; o coração tomado pela angústia; o medo de fazer as coisas mais simples, como andar pela rua; o peso que sentimos sobre o mundo; as consequências nefastas deixadas como rastro: aumento de suicídios, doenças mentais,  divórcios, etc.

Aos poucos, vamos tendo  a certeza de que temos um rival que ataca não apenas nossos corpos, mas nossa alma. Ataca-nos em nossa totalidade. Um inimigo que nos quer doentes, física e emocionalmente, que nos quer fragilizados, frios e individualistas, distantes uns dos outros. O que pretende esse inimigo? Nos desumanizar ou testar nossa humanidade?

Fato é que, sem liberdade, amedrontados e encurralados, vamos nos tornando cada vez mais dependentes da máquina, sobretudo do celular e do computador, a quem entregamos,  a  cada dia, num percentual cada vez maior, a intermediação da nossa comunicação com o outro, a possibilidade de trabalho, de estudo e de entretenimento.  E tristemente vamos assimilando a ideia de que, daqui para frente, a condição básica para nossa segurança é a digitalização da nossa existência. Aprendamos, pois, digitalizar sentimentos.



QUANDO O BEM DECLINA

Ana Trajano

    Só mais alguns dias e 2017 já não será mais, passará a ser apenas um ato do frágil teatro humano no palco do tempo. Irá embora com uma certeza: nenhum outro ano  foi  tão próspero em datas para um suposto fim do mundo  quanto ele. Várias foram as previsões, mas o nosso planetinha, driblando todas as teorias da conspiração, continua de pé brincando na galáxia. O dia e a hora, como nos avisou o Mestre, só quem conhece é o Pai, aquele em quem tudo se move e tudo sabe. Para que suas crianças (nós)  não se desesperem, Ele prefere manter  segredo.

           O fim do ano, porém, não acabará com a teoria do fim do mundo. Ela permanecerá e, certamente, outras previsões e novas datas virão como algo esperado e, até certo ponto, ansiado por muitos, nestes tempos tão difíceis nos quais os acontecimentos diários nos deixam tão perplexos.

            Mas por que será que o homem comporta-se como se desejasse o fim do mundo? O mundo, ao que parece, é confundido com a realidade. O homem, desse modo, não deseja o fim do seu planeta - apesar de tudo fazer para destruí-lo  -, mas o fim da realidade que criou, com coisas boas e outras extremamente desagradáveis.

            Entre as desagradáveis está sua decadência moral, ética, política, religiosa, etc. Esta, com efeito, chegou no nível da insuportabilidade. Estamos como que perdidos no meio do lamaçal. Perdidos, resgatamos da memória o que nos foi apresentado como solução para a nossa ruína histórica e cíclica: o fim do mundo com o dilúvio. Deus não acabou com a Terra, mas com a humanidade perversa, corrompida. O mundo, então, não é a Terra, mas o que está dentro de nós: a nossa visão limitada, simplista, egoísta, presa à cadeia espaço/ tempo/ matéria, sobretudo a matéria.

            Quando falamos no fim do mundo, estamos de fato reconhecendo as nossas limitações, os nossos erros, a nossa degeneração - coisas contrárias àquele que nos criou e que é pura perfeição. Deus nos criou para ser perfeitos e, dentro dele, não suporta a imperfeição. No fundo, todos nós sabemos disso. Quando desejamos o fim do mundo, estamos, na realidade, reconhecendo o que há de imperfeito e corrupto em nós e desejando seu fim.

          No Bhagavad Gita, Krishna diz a Arjuna que, sempre que o bem declina, Deus desce à Terra para restaurá-lo. Não é por outra coisa senão por isso que estamos esperando a segunda vinda de Jesus.


 

A TRAIÇÃO, MÃE DE TODAS AS FRAQUEZAS

 Ana Trajano


O Beijo de Judas, de Giottto de Bondone (Wikipedia)
         Conta-se que Alvarenga Peixoto ao tomar conhecimento de que fora descoberto como inconfidente, pensou em trair seus companheiros para livrar sua pele. Ao chegar em casa falou de sua intenção para a esposa, Bárbara Heliodora, enfatizando que seria o único meio de salvar sua vida, e de sua família não perder todos os bens, ficando na miséria. A decisão da bela Bárbara foi surpreendente:
         -"Trair seus companheiros? Nunca! Prefiro a viuvez, a orfandade para os meus filhos, a pobreza, do que te ver entrar para a história como um traidor"-, disse ela, ao que Alvarenga Peixoto teria respondido: “Tens razão, Bárbara! Nunca fui vil, nem covarde.”  Ele morreu na prisão e ela terminou pobre e demente.
Ambos preferiram tudo isso a sucumbir àquela que talvez seja a raiz de todas as fraquezas humanas: a traição. Todo erro, na verdade, é uma traição. É um trair-se a si mesmo. É trair em si mesmo a possibilidade de crescimento. É trair a vida. É trair a lei universal de ascensão,  a que todos nós estamos submetidos. Nós estamos aqui para aprender. Se o mundo é uma escola, a vida é a lição. Bárbara Heliodora entendeu isso.
Neste sentido, a confiança nos outros e em nós mesmos é didática; trair a confiança é optar pela ignorância, pela estagnação do processo individual de crescimento. Por entender isso, Judas preferiu a morte. Sabia que, a partir daquele dia, jamais ficaria em paz. O traidor não a conhece, pois sabe que, sobretudo, traiu a si mesmo. Confiança é uma fiança que se oferece a outro, e a nós, e a pior fiança traída é aquela que deixamos de pagar a nós mesmos.
Talvez nenhum outro erro decepcione tanto quanto a traição, quando parte daqueles a quem amamos e a quem confiamos a nossa vida, os nossos segredos e o nosso amor. Quando pensamos assim, entendemos  perfeitamente o espanto de Júlio César: “Até tu, Brutus?” E a tristeza de Jesus: “Judas, é com um beijo que trais teu mestre?”

A traição é tão perversa que, em vários momentos da história, ela está associada à morte, começando por Caim ao matar Abel. Ela é, ao que parece, o primeiro pecado do homem e começou quando Adão e Eva traíram a confiança do próprio Deus. A traição quando não mata, fere gravemente o coração de suas vítimas.


 

   O  OLIMPO DOS DEUSES SEGUIDOS

      Ana Trajano

       Quem já parou para pensar que a boa relação entre eu e o outro depende do reconhecimento da imagem de Deus em nós, de que nele nossas faces são idênticas e nossas digitais divinas também?  Somos um!

        O que nos separa é a incapacidade de não enxergarmos na nossa face a face do Pai; de não vermos a máscara que, como filhos rebeldes,  por orgulho criamos para nos afastarmos d'Ele, e consequentemente um do outro. Essa máscara que chamamos de ego, e que, se deixarmos, embota Deus em nós. 

       Percebe: O homem que não quer ver Deus em si, adora a si mesmo como deus. Adorando a si não vê o outro como irmão, mas como outro deus, seu rival. A fraternidade deixa de existir, e o mundo, ao invés de espaço de partilha e acolhimento, transforma-se em olimpo onde brigam os deuses.

       Julgando-se autossuficiente, nega o Criador e seu amor, e esvaziado do amor divino transforma-se apenas num animal irracional que alimenta-se do orgulho, da ambição, da inveja, da fome de poder, da prepotência…

       Se o homem é feito à imagem do seu Criador, elevado pelo ego à categoria de um deus, ele não reconhece no outro a imagem do Pai. Orgulhoso e narcisista, vê apenas a si no seu lago de cristal. O outro é uma ameaça ao reflexo de sua imagem.

       O que prevalece é o eu soberano. O que nega a Deus, nega consequentemente a fraternidade entre os homens, e, negada essa irmandade, o outro é apenas um rival indigno de respeito.

       Veja o exemplo das redes sociais, nas quais as pessoas não têm irmãos, mas seguidores. Os deuses desse olimpo de seguidos, não seguem os que o seguem, não conhecem suas faces, pois do trono de deuses nos quais se encontram, não podem seguir, apenas ser seguidos




OS PÁSSAROS SEMPRE BUSCAM O CÉU

Ana Trajano


     Querido pássaro, a terra natal que te serviu de ninho, acolhe hoje o teu corpo de volta. Nela, ele será plantado, adormecido como uma das incontáveis  sementes desse jardim de mistério, cujos segredos só o Jardineiro conhece. 

     Teu verdadeiro ser, porém, alçou voo, querido pássaro, como que liberto da gaiola, e imagino como deve estar  feliz, livre de qualquer fronteira, de qualquer obstáculo que o impeça de buscar as alturas.

      Sim, sempre vi em ti um pássaro, um belo pássaro, cujo maior prazer era superar as altitudes conquistadas: aquela montanha seria escalada; aquela floresta,

desbravada; aquela
praia banharia todos os seus
sentidos; aquela cachoeira lhe contaria seus mistérios.

      Sua comunhão diária era com a natureza, a mesma que os pássaros conhecem. E sua natureza preferida era a da cidade que escolheu para pousar.

     O Rio de Janeiro, fevereiro e março fez tão parte de você, querido pássaro, como fez suas praias, jardins, morros e floresta. Você completou sua paisagem: o pássaro que pairava sobre o habitat escolhido.

      Quanta beleza havia em você: a liberdade translúcida no brilho dos seus olhos, cor de mar de verão; a alegria exposta no sorriso ininterrupto; o coração transbordante de amor pela vida.

      Que falta você fará, doce e amado pássaro! Daqui, fico imaginando  seu voo. Você superou todas as altitudes porque os anjos lhe emprestaram asas. Os pássaros sempre buscam o céu. Você agora o conquistou.




VOCÊ VEM SEGUNDA-FEIRA?

Ana Trajano


    Valdemarina. Nunca entendi o nome dela, apesar de sentir nele o mesmo sabor das goiabas maduras que comíamos sentadas nos galhos da goiabeira, instantes nos quais ela esquecia as tristezas da orfandade precoce e permitia-se rir e brincar como a criança que era; apesar de sentir nele também a mesma fisionomia das segundas-feiras que lhe traziam sorridente pelo caminho.

    Ela passava sempre às segundas, acompanhada de seu irmão, naquela dolorosa e comovente jornada de mendicância. Duas pobres crianças com o saco de esmola às costas onde iam guardando a caridade de um e outro que lhes encheria a barriga, ou pelo menos amenizaria a fome. Eram órfãos de pai, e a mãe, muito pobre, obrigava-os a pedir pelas estradas, enquanto ela, em casa, cuidava dos filhos menores.

    Sempre paravam em nossa casa, onde comiam  e depois juntavam-se a nós, a mim e meus irmãos, para brincar. Nós os amávamos e, ansiosos, aguardávamos o dia em que passavam. 

A brincadeira que mais gostávamos era subir nas árvores do pomar que ladeava a nossa casa: goiabeiras, cajueiros e mangueiras. Valdemarina tinha sempre uma conversa nova, uma história diferente. 

    O irmão menor, magrinho e retraído, apenas concordava com o que ela dizia. Havia entre os dois uma cumplicidade que transcendia a coisa física: eram duas almas unidas na pobreza e na dor, dispostas a lutar no palco de angústia e sofrimento com o qual o mundo se apresentava a eles.

    Havia algo em Valdemarina que atraía-nos, sobretudo a mim; algo de grande, de majestoso. Sim, na minha pouca idade, eu enxergava por trás daquela menina que também tinha a minha idade, de perninhas finas, rosto pálido e vestidinho de chita, coberto de remendos, uma nobreza que se aproximava a das estórias de heroínas que eu ouvia, ou das jovens santas que minha vó contava.             Talvez fosse suas virtudes que  se deixavam transparecer a mim. Admirava sua coragem de enfrentar os longos quilômetros percorridos  a pé, acompanhada apenas de um menino, menor que ela; admirava sua responsabilidade e altivez. Mesmo no melhor da brincadeira, ela sabia a hora de parar, pois o caminho lhe aguardava, o saco ainda estava vazio e a caridade precisava ser encontrada nas léguas a percorrer. Despedia-se, mamãe lhe dava algum dinheiro e eu sempre perguntava: "Você vem segunda- feira?"





DO SER MULHER NA PANDEMIA

Ana Trajano


Duas comemorações do 8 de Março -2020 e 2021-, feitas em meio a uma triste realidade: a pandemia.  Ela  trouxe, para cada uma de nós, algo da mulher à antiga. Com as famílias confinadas, fomos obrigadas a viver um pouco das nossas mães e avós. Pelo menos boa parte de nós sabe agora o que é passar os dias dedicando-se exclusivamente com os seus - e fazendo isto arduamente.

 Certamente, muitas de nós lembramos das nossas ancestrais esses dias, e quanto poder tinham essas mulheres - aquele poder medido não pelos cargos que exerciam, mas pelo quanto trabalhavam.  Nós, mulheres modernas, que dispomos de uma infinidade de eletrodomésticos para facilitar nosso trabalho, quando lançamos um olhar para o passado, não há como não perguntar de onde elas tiravam tanta força para cuidar da casa e dos filhos - lavar, passar, cozinhar, arrumar, fazer lição de casa, etc. Isso era poder na prática, não  apenas uma palavra de salto para elevar egos às alturas.

Outro dia vi alguém reclamar que não suportava mais estar em casa com os filhos pequenos, que não via a hora de os colégios voltarem. Fiquei pensando na minha mãe com quatro crianças, sem nenhuma ajuda e obrigada a fazer tudo. Nunca a vi reclamar. De onde ela tirava aquele poder para dar conta do recado? Do seu amor de mãe. Não é que as mães de hoje amem menos. São os tempos, os costumes e as condições que são outros e as obrigam a esse distanciamento dos filhos.

Para ser sincera, entendo aquela pessoa que reclamou. No começo da crise foi muito difícil para mim também, acostumada que estava com as minhas filhas já adultas e o marido fora o dia todo. O trabalho doméstico triplicou. Me vi exausta, mergulhada numa carga de trabalho que não tem hora para terminar. Recorri à lembrança do poder das minhas ancestrais: se elas podiam, eu também vou conseguir. 

 Afinal, sou mulher e, por natureza, dona desse poder que nos caracteriza.

Ah, e dona da vaidade também. Juro que desconhecia o tamanho da minha, até acordar, me olhar no espelho e ver o rosto mais envelhecido, as rugas que se multiplicaram, os traços que não existiam. Sim, a pandemia envelheceu-me. Envelheceu-me porque sou mulher, sou mãe e esposa e quando algo exige cuidado, ele é triplicado. Como dizia vovó, preocupações trazem rugas. Trouxeram as minhas.

E, diariamente, à medida que os dias avançam e a pandemia não dá sinais de recuo, apenas crescem minhas tarefas e preocupações: a do asseio desmedido com a casa, e o cuidado com os meus para evitar o contágio. Dias estressantes, mas ao final de cada um deles tenho a certeza de que procurei dar o melhor de mim, e isso me gratifica. À minha mãe e a todas minhas ancestrais, obrigada pelas lições de força e poder!





O SOL E OS BEM-TE-VIS

Ana Trajano


       Eles acompanham o sol em seu parto de luz e enquanto este se ergue, dourado  sobre o mar, eles cantam: bem-te-vi, bem-te-vi… O sol e os bem-te-vis: a luz e o bem, como doação divina. 

       Ouço a melodia desses minúsculos seres alados e penso:  quero aprender com eles a sobreviver da esperança que veem no mundo e nos outros. 

        Tenho para mim que a esperança não morrerá enquanto existir um bem-te-vi. Eles são a alma de toda esperança, a fé quando esta lhe falta; são seus olhos quando ela, já desesperançada, lança um olhar sobre si mesma ao ouvi-los.

        Tudo pode desabar, ruir ao seu redor, mas os bem-te-vis enxergam apenas o lado positivo de tudo, aquele que, apesar de existir,  ninguém consegue enxergar.

Bem-te-vi, ou o bem que eu vi, ou em ti vi o bem. 

         O bem-te-vi é o canto do bem, a certeza da sua vitória; é a paciência de saber esperá-la; é a confiança no tempo de Deus.

       Esses dias cinzentos e tristes do nosso tempo ainda podem contar com as cores suaves dos bem-te-vis. Os dias ainda acordam alegres com o seu canto. Como seria bom se aprendêssemos a ser como eles! Quanto desgaste e quanto sofrimento desnecessários seriam evitados!

       Aprendamos, com o sol e os bem-te-vis, a amar a tudo e a todos, incondicional e despretensiosamente e, talvez assim, a todos veremos bem e em tudo veremos o bem. Seremos o que Deus quer de nós: luz e bem.




O RIO E O TEMPO

Ana Trajano

    "Só faça o que sentir vontade! A vida é curta demais para que atrapalhemos seu curso!"
Eu havia acabado de acordar e isto chegou à minha mente, como um desses insights que temos às vezes e que mais nos parecem o cochicho de alguém.
    Eu estava para tomar uma decisão - mais impulsionada por outra pessoa do que por mim -, e apesar de minha intuição pedir que não cedesse, eu estava prestes a fazê-lo. A verdade é que, ao longo da minha vida, fiz mais a vontade dos outros do que a minha. E agora aquele alerta.
Percebi que o tal insight era simplesmente o despertar da minha consciência que clamava insistente:
    "Por favor, perceba! Todas as vezes que você faz o desejo dos outros e não o seu, está atrapalhando o curso de sua vida, pois somente os seus próprios anseios representam o fluir normal dela. Os dos outros, direcionados a você, nada mais são que obstáculos que dificultam sua caminhada rumo ao destino que é você mesmo.
    Compare a vida a um rio que serpenteia tranquilamente para o mar, até que alguém decide construir uma barragem no seu meio, e ele chega esfacelado ao oceano, apenas pela metade, ou menos que isso. O desejo do outro fez bem a ele, mas foi péssimo para o rio. Assim também é com você. 
    Não permita que represem sua vida e você chegue reduzida ao seu destino, pois o passar das horas não permite conserto, não tem ré, é sem retorno. Tudo é avante, em frente, já que o tempo é a pressa da eternidade. A pressa de chegar a ausência de si mesmo. Ele - o tempo- só existe fora da eternidade; dentro dela ele é ausente, como são ausentes ponteiros no sol. Mas os homens insistem em construir relógios solares, e acreditar nas horas que eles marcam.
    Sabe aquela máxima de Heráclito, segundo quem ninguém entra no mesmo rio duas vezes? Pois é! O tempo é esse rio a correr impiedoso. Ninguém vive o mesmo instante duas vezes, e o instante é a única realidade palpável. Num instante, já é passado e não volta mais. 
    Lembre-se que o rio desce a montanha, mas não a sobe. Cada um de nós é um rio de luz a caminhar de volta à fonte, mas numa estrada, à noite, alguém precisa baixar o farol para não atrapalhar a visibilidade do caminho do outro. Dê sinal para baixar a luz a quem está impondo a sua muito fortemente, pois ela apenas lhe ofusca e o seu percurso pode não ser visto."



MEU CAULE DE LUZ

Ana Trajano

Faz um ano que você partiu!  Desde então a vida, para mim, compara-se a uma árvore, cujo tronco foi cortado, porém os galhos permanecem suspensos, como uma mágica - recurso último do universo para os seres que ficam sem suas raízes. É assim que me sinto: suspensa, sem o caule que me prendia à terra.
             A vida, sem você, transformou-se num monótono flutuar, entre as estrelas- responsáveis pelos elementos para a formação do teu corpo físico- e a terra onde ele, tranquilo, repousa. Não me falta chão; faltam raízes, e sem elas flutuo. Assim estou: num caminho aéreo entre dois mundos, deixando rastros no ar, como folhas de outono, que também perderam seu tronco, seus galhos, e soltas buscam pernas no vento.
            Deus, porém, não é mágico, papai.  Ele não faz ilusionismo; constrói realidades, indiscutíveis realidades. A sua sabedoria está além de todo nosso pretenso saber, de nossas rasas filosofias. Assim sendo, Ele permite que os galhos que ficam sem seus caules, sirvam de caules para outros galhos, e do amor que têm por estes continuem vivendo. Afinal, a árvore da vida  precisa ser podada, mas jamais morrerá.
            Deus me deu dois galhos, papai, –duas filhas lindas – por quem eu peço - na apressada maratona dos ponteiros - que Ele prolongue meus dias de caule, para que elas não venham tão cedo experimentar a sensação de flutuar.
            A vida, porém, meu pai, está além da terra e além das estrelas. Ela está na fonte de energia divina que faz a semente de uva brotar do seio da terra - onde tudo é escuridão - e virar parreira à luz do sol. Assim também é com todos nós: precisamos ser “plantados”, passarmos pela tenebrosidade da morte, como a sementinha que  apodrece embaixo do chão, antes de nascer, para ressurgirmos à luz de Deus. Plantado, você agora é meu caule de luz no céu - talvez daí eu me sentir tão aérea....




O APOCALIPSE NOSSO DE CADA DIA
Ana Trajano

Estamos vivendo o apocalipse, muitos dizem. E estamos mesmo, cada um vivendo o seu individualmente. O apocalipse é uma desadaptação da natureza à perversidade humana; um fartar-se do bem com mau; um desgosto do Criador com a criatura. O apocalipse é a revolução invisível dos querubins; é a guerra final para o final das guerras. Vivemos o nosso quando não nos adaptamos mais às coisas do mundo, quando o anjo que temos não aceita mais conviver com o diabinho que também há em nós, não restando alternativa para ambos, a não ser a luta final, última, decisiva.
            Eu já nasci apocalíptica. Vivo em guerra constante, comigo e com o mundo, tentando fazer as pazes entre o diabo e o anjo, esquecida de que não se serve a dois senhores. Quando um dá a mão, o outro baixa a dele, e meu coração é ringue sem tatame: quem cair sente forte. Portanto, ninguém quer ir ao chão. Mas prefiro - e vou preferir sempre - o anjo. Ele me faz sentir saudade do paraíso, o único lugar decente, bom de morar que existe. Lá, não se serve a dois senhores e não corremos o risco de, numa dessas, brigas, sobrar apenas o precipício debaixo dos nossos pés. (Essa possibilidade faz o anjo que  há em mim segurar firme o escudo da fé para dar umas rasteiras, todos os dias, no diabinho que também abrigo.  E ele tem apanhado um bocado!... Ah se tem!...)
            Decidi: quero de volta o paraíso, não sinto vergonha de dizer! A paz está lá e eu a sinto: nem branca, nem preta, mas incolor, de braços estendidos me chamando. O paraíso é minha pátria! Nem mesmo sei por que imigrei!...Talvez meu espírito aventureiro, no desejo de conhecer outros mundos, tenha ido longe demais, e chegou aonde não devia - ou aonde devia para conhecer as consequências da ambição desmedida.
            No paraíso não vou me sentir um peixe fora d’água, como sempre me senti aqui. Nunca me adaptei ao mundo! Ou foi o mundo que nunca se adaptou a mim? Sei lá! As duas coisas, talvez. Fato é que nunca consegui conviver bem com os sistemas do mundo. O de trocas, então!...  Tenho sérios problemas com o dinheiro, apesar de estarmos sempre discutindo a relação, mas não há jeito. Quando o tenho, abro de mais a mão e lhe dou a liberdade que é proibida; quando não o tenho desejo-o como a um amante a quem se promete tudo - até fidelidade - para não deixá-lo escapar.
            No paraíso não há nada disso: nem violência, nem injustiças, nem corrupção. No paraíso não há preconceito, nem discriminação, nem divisão por classes; nem edifícios há, para que não fiquem uns sobre os outros – e os do apartamento de cima não se sintam superiores aos de baixo, porque  o seu custou mais caro. No paraíso não existe pirâmide social. Ótimo, pois detesto escada, e a deste mundo já me deu artrose!  Lá não existem necessidades - nem de roupa, pois não faz calor nem frio. O clima é ameno e a vida é mansa. A comida é boa – só manjar de Deus –, e a música de qualidade: harpas, flautas, violinos...Tudo 0800, oferecido pelo Criador para os anjos que venceram seu apocalipse, que sobrepujaram o diabinho. Força, meu anjinho! Você chega lá!





         A VIDA COMO BODE EXPIATÓRIO
         Ana Trajano

Dante e Virgílio no Inferno,
 obra de William-Adolphe Boguereau (Wikipedia)
É próprio do ser humano jogar a culpa de responsabilidades que são suas- geralmente  de suas más atitudes- em algo ou alguém. Atire a primeira pedra quem, no seu dia-a-dia, nunca fez isso, desde aquela discussão com o outro no trânsito, aos problemas familiares, rotineiros.  Se uma coisa deu errada, ou não saiu como queríamos, é difícil admitirmos que a culpa seja exclusivamente nossa, e lá estamos nós a empurrá-la sobre o outro. Ter um bode expiatório, para muitos, parece tão necessário quanto um par de muletas para segurar suas deficiências.
 O bode expiatório é o saco de pancadas da covardia. Em qualquer setor da vida em sociedade encontramos exemplos diários, corriqueiros dessa infeliz realidade.  O político, por exemplo,  é terreno fértil para a utilização do bode expiatório. Basta pegarmos um jornal, ou revista, e sentiremos o peso da hipocrisia, da mentira, nas páginas recheadas de culpas e defesas.
E quando nosso bode expiatório é a própria vida? Sim! Este é o nosso bode expiatório de maior estatura!  Se olharmos ao nosso redor não é difícil encontrar alguém a culpá-la por suas dores, frustrações, erros, tendências.
         É o bode expiatório perfeito. Em silêncio acolhe as nossas culpas. Não reclama defesas, não exige reparação, nem sequer pede clemência quando, inocente, acata nossos piores desatinos. Talvez a necessidade de tê-la como bode expiatório, leva-nos a uma relação de quase inimizade com  ela, a tratá-la como se fosse algo exterior a nós, um ser ou uma coisa à parte. A todo instante lá estamos nós carregando-a de culpa. Querem um exemplo? Uma das nossas frases mais repetidas diante dos obstáculos, das intempéries, é: “É a vida!” O emprego não deu certo? “É a vida!” O salário não dá para cobrir as contas? “É a vida!” O casamento acabou? “É a vida!” A doença bateu à porta? “É a vida!”
         Assim, sem perceber, emprestamos à vida aquele rosto de ingrata, de megera, de madrasta malvada sempre pronta a atrapalhar nossos planos, a transformar em pesadelo os nossos fantásticos sonhos. E a vida passa de bênção para castigo. Ela, porém, não é um castigo; nós nos castigamos- e somos castigados- nela.
         A vida não toma decisões por nós; nós tomamos decisões nela. Ela é apenas o palco; o espetáculo somos nós que fazemos. Somos autores, atores e diretores de nossa própria peça. A única função do palco é acolher como  espaço. Somos atores tão despreparados que, perdidos em nosso drama, nos confundimos com o palco. E, assim confundidos, só nos resta a catarse de oferecer à vida o papel de bode expiatório.





  
 BOÉCIO: UMA LUZ NA IDADE MÉDIA
         Ana Trajano

A Consolação da Filosfia, de Mattia Preti
         Que adjetivos usar para definir um homem que dominava não somente o conhecimento livresco, mundano, passeando com maestria por todas as ciências, mas tinha o domínio, sobretudo, do conhecimento de si mesmo? Aquele que, quando adquirimos, deixamos de fazer as infantis perguntas: “Quem sou?” “Qual é o meu destino?”
         Talvez os mais nobres adjetivos sejam poucos para qualificá-lo. Afinal, Boécio é Boécio. Não precisa dizer mais. Define-se por si mesmo. Só precisamos ler, entendê-lo e mergulhar no oceano de sabedoria com o qual presenteou a humanidade.
         Apesar de ter morrido muito cedo, com aproximadamente 44 anos (alguns autores divergem quanto ao ano do seu nascimento), sua curta vida eternizou-se para além das fronteiras do tempo, disseminando-se nas páginas da história, como só acontece com as grandes almas. Digo grande alma porque os grandes homens ficam conhecidos por seus grandes feitos, mas grandes almas tornam-se inesquecíveis por transcenderem a eles.
         E que grande alma Boécio foi! Um iluminado a iluminar seu tempo. Se houve uma idade das trevas, essa, com certeza, foi anterior a Anício Mânlio Torquato Severino Boécio, pois a Idade Média, depois dele, brilhou com seu saber. Não esqueçamos, porém, os méritos de Agostinho, cujos restos mortais repousam junto aos seus na Igreja de San Pietro in Cielo D’Oro, em Pávia.
         Transformado em beato, sobre ele, Dante, que o colocou no Paraíso, no Céu do Sol, escreveu: “A visão de todo bem extasia esta alma santa que mostra, a quem sabe bem compreender, que o mundo é enganoso. O corpo, do qual ela foi expulsa, jaz sob a terra em Cielo D’Oro, e ele, de martírio e de exílio, alcançou esta paz.”
         O que dizer, afinal, de um homem para quem o amor é o princípio que tudo rege, e todo o Universo é permeado por ele? Talvez possamos dizer que, como filósofo, ele via o óbvio, onde muitos, infelizmente, nada veem. E acrescentar que era magnífico, como magnífico são estes versos:

         “O amor governa o mar, a terra
e o céu. Mas é soltar lhe soltar de leve
as rédeas para que todas as coisas
que até então se amavam umas às outras
fiquem em guerra e destruam a si mesmas.
Felizes aqueles que dentro da própria
Alma possuem o mesmo amor
que rege a terra, o céu e o mar.”

Em a “Consolação  da Filosofia”, livro que escreveu na prisão, entre sessões de tortura, à espera de que se concretizasse a sentença de morte a que fora condenado, ele imagina um diálogo com a dama Sabedoria, e esta lhe pergunta: “Tu te lembras de que és um homem?” “Como, disse eu, haveria de não lembrar?” “Então, replicou ela, o que é afinal um homem? Poderia me explicar?” “Tu me perguntas se sou um animal racional e mortal? Sim, eu o sei, e é isso que digo que sou.” E ela me perguntou: “Não sabes que és mais alguma coisa?” “Não, respondi.” Disse então ela: “Agora reconheço uma outra causa da tua doença, bem como a maneira de te curar. De fato, é devido ao esquecimento que estás perdido, que te lamentas de ter sido exilado e privado dos teus bens. É porque desconheces qual é a finalidade do Universo que tu imaginas serem felizes e poderosos os que te acusaram.”
Concluindo, o que Boécio escreveu, 15 séculos atrás, continua muito atual, e continuará sempre, pois a humanidade parece cega para o mundo de ilusão no qual vive. O esquecimento daquilo que somos é a causa de todo sofrimento humano. Quando esquecemos o que somos, e nos identificamos apenas com o corpo, deixamos de investir na alma e investimos apenas na matéria, ou seja, em algo perecível, e perecemos com ela.
Mas, afinal, qual é a finalidade do Universo? Eu acho que cada um de nós tem uma resposta a esta indagação. Eu diria que é o amor. O amor que, como afirma Boécio em seu poema, rege o céu, a terra e o mar. Através dele, e por ele, tudo foi formado. O amor não egoísta. O amor que é todo poder, mas que se identifica apenas com a humildade, com o bem. A meu ver a queda do homem, a que se referem os textos bíblicos, refere-se exatamente a isso: a desidentificação do homem com esse  Amor, que é o TODO, o UNO, e sua identificação apenas consigo mesmo, com o ego.                    


SAUDADE
Ana Trajano
                                                                                

Foto: Eduarda Trajano
“Saudade- sentimento nostálgico ligado à memória de alguém ou algo ausente.” (Dicionário Houaiss) Pois é, fui buscar definição para isto que há um mês arde como chamas no meu peito. Mas não encontrei nada que defina o que estou sentindo, tão vagas são as definições linguísticas para o termo. Será falta de palavras que abarquem a saudade, ou ela só é traduzível apenas por quem a sente, pelo sal das lágrimas que minam das impossibilidades dos reencontros?
         Começo a acreditar categoricamente nesta hipótese e, assim sendo, nenhum dicionário caberia suas descrições, pois existe uma para cada ser humano. Cada um sente saudade de uma forma, e ela está muito além de ser simplesmente essa nostalgia a quem os dicionários, tão simplificadamente, a prendem.
         O que ela é para mim, então? Vou deixar que fale o meu coração, pois só ele é capaz de traduzi-la. Saudade é a dor com a partida do outro, mas é também a beleza do ADEUS, pois ambas, dor e beleza, se misturam como matéria-prima de um único sentimento: a saudade. Doloroso é ver o outro partir, mas belo é entrega-lo aos cuidados de Deus: adeus! A Deus!
         Saudade são reflexos do passado em espelhos do presente. É o nosso parto ao desapego, e tão grande é sua dor! Saudade é a distância em sua forma instransponível. É a cerca de arame farpado entre dois mundos. É o cartão postal no fundo do baú, guardando em letras miúdas a clausura do pretérito. Saudade é a foto amarelada brigando com nódoas do tempo.
         Saudade tem o tempero da dor,  no debulhar-se em lágrimas. É sal em exagero agredindo o sabor da vida. Saudade resseca os lábios e desidrata a alma. Saudade é amor em  estado líquido, descendo em enxurrada. Saudade desabriga como tempestade e, desabrigados, somamos à do outro a saudade que sentimos de nós. E, no final, não sabemos de quem sentimos mais saudade: se daquele que tanto amávamos e partiu, ou da nossa parte que se foi com ele...



   
Carta para Clarice
Ana Trajano

Cara Clarice,

Não sei onde estás. Certamente compartilhando a paz das estrelas que reluzem e que eu, cá de baixo, fico a olhar, imaginando em qual delas te escondes, com qual delas te fundistes. Acho que foi com aquela que mais brilha, pois a tua luminosidade irradiava em toda "terra brasilis". Imagina ela - tua luz- fundida com a de uma estrela!...

É por isso que partiste, porque do alto brilhas com mais intensidade. E com mais intensidade, iluminas não só a nós, os da tua pátria, eternamente órfãos de ti; mas a todos nós que navegamos nessa nave-mãe chamada Terra, que tem o céu como teto e as estrelas como luminárias. Do alto, Clarice é mais Clarice, é mais mistério, é mais profunda e inatingível, tocando a todos com sua intangibilidade, assim como as estrelas que nos ofuscam e encantam, tão inacessíveis.

Tenho uma foto tua, recorte de jornal, que guardo como preciosidade. Nunca entendi teu olhar. É impossível ler, interpretá-lo. És uma obra de arte no olhar, um texto teu, uma Paixão Segundo GH. O mais profundo mistério está guardado nos teus olhos. Perco-me em divagações, tão abstratos são eles. 

Lembrei tanto de de ti esses dias!...É que se foi alguém da minha família. Foi também juntar-se  a uma das estrelas aí do alto. Era a minha sogra, para quem os anos já pesavam como fardo e a doença se impunha como tortura. O marido, ainda mais velho que ela, desde então a procura dentro de casa.

Já lhe disseram várias vezes que ela partiu, que não está mais aqui, mas ele, em sua senilidade, não quer aceitar. Ou quem sabe, num lampejo de lucidez, que está além do nosso entendimento, continua a procurá-la, como se ela tivesse se encantado, ou estivesse brincando de esconde-esconde, num plano tão sutil, mas tão próximo de nós, que basta apenas encontrar o portal, a passagem, e encontraremos também o outro, que está escondido, encantado, sumido. Como ele ainda não descobriu a passagem para esse lugar encantado, pede a todo instante para ir embora, argumentando que aquela não é sua casa, que esse não é seu mundo. Como se a esposa, ao partir, tivesse levado sua casa, seu mundo.

Talvez estejas pensando: "Que tenho eu a ver com isso? O que a fez lembrar de mim?" Foi uma frase que disseste quando, certa vez, pediram que definisses a morte. Lembra qual foi tua resposta? Eu vou aguçar-te a memória. "Uma definição da morte? O meu cachorro Ulisses me procurando por todo o apartamento." Foi essa tua resposta. Certamente o teu olhar de mistério vagando pela casa, ou fixo nos olhos de Ulisses. É este o recorte de jornal com teu olhar indecifrável que guardo até hoje.

Que frase magistral! Somente alguém como Clarice, que tem a palavra mistério como sinônimo de si própria, para definir tão bem o grande mistério que é a morte, esse encantamento que deixa os que ficam tão desencantados. Todos nós nos sentimos como teu Ulisses diante da morte, procurando esse portal, cuja chave parecemos procurar na dor, nas lágrimas, na saudade, na vontade de morrer....Somos tolos, míopes como teu cãozinho. Enxergamos tão pouco, apesar de ser tudo tão claro, tão Clarice....


Um comentário:

terapiaomkim.blogspot.com disse...

Nossa minha querida amiga,suas crônicas são retratos fieis da vida, de nossos sentimentos e reflexões! Escreve com maestria e profundidade, e espero que escreva, mais e mais, para que tenhamos o prazer de ler suas sabias observações!Um grande abraço de luz!

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