DIGITALIZAR SENTIMENTOS
Ana Trajano
Vivemos um tempo de desafios, onde o principal é o de permanecer ileso a um inimigo invisível e mortal. Por conta dele, tudo à nossa volta parece ser um desafio: adaptar-se às mudanças de um tempo que nos tira o dinamismo do coletivo para a monotonia do privado; a alegria do presencial para a sisudez do remoto; o aperto de mão pelo toque frio dos cotovelos; o calor do abraço à limitação de uma palavra no final das mensagens do zap.
Uma palavra que sempre foi indesejada nas relações humanas, tornou-se agora a palavra de ordem: distanciamento. O que antes podia representar a morte e o indesejado de uma relação, hoje é enaltecido por representar a vida. Distanciamento. O amor é medido não pela proximidade, mas pelo distanciamento. Distanciar-se é o salva-vidas. E distanciando-nos do outro, vamos nos distanciando também daquilo que melhor caracteriza a nossa condição humana: o afeto, o carinho, o compartilhar. Isto é, vamos nos distanciando de nós mesmos, do que nos define e diferencia.
Quão desumano é tudo isso! O parente que mora ali tão perto mas não podemos visitar; os entes queridos que partem e dos quais não podemos nos despedir; o sorriso acabrunhado atrás da máscara; o abraço contido; o coração tomado pela angústia; o medo de fazer as coisas mais simples, como andar pela rua; o peso que sentimos sobre o mundo; as consequências nefastas deixadas como rastro: aumento de suicídios, doenças mentais, divórcios, etc.
Aos poucos, vamos tendo a certeza de que temos um rival que ataca não apenas nossos corpos, mas nossa alma. Ataca-nos em nossa totalidade. Um inimigo que nos quer doentes, física e emocionalmente, que nos quer fragilizados, frios e individualistas, distantes uns dos outros. O que pretende esse inimigo? Nos desumanizar ou testar nossa humanidade?
Fato é que, sem liberdade, amedrontados e encurralados, vamos nos tornando cada vez mais dependentes da máquina, sobretudo do celular e do computador, a quem entregamos, a cada dia, num percentual cada vez maior, a intermediação da nossa comunicação com o outro, a possibilidade de trabalho, de estudo e de entretenimento. E tristemente vamos assimilando a ideia de que, daqui para frente, a condição básica para nossa segurança é a digitalização da nossa existência. Aprendamos, pois, digitalizar sentimentos.
QUANDO O BEM DECLINA
Ana Trajano
Só mais alguns dias e 2017 já não será mais, passará a ser apenas um ato do frágil teatro humano no palco do tempo. Irá embora com uma certeza: nenhum outro ano foi tão próspero em datas para um suposto fim do mundo quanto ele. Várias foram as previsões, mas o nosso planetinha, driblando todas as teorias da conspiração, continua de pé brincando na galáxia. O dia e a hora, como nos avisou o Mestre, só quem conhece é o Pai, aquele em quem tudo se move e tudo sabe. Para que suas crianças (nós) não se desesperem, Ele prefere manter segredo.
O fim do ano, porém, não acabará com a teoria do fim do mundo. Ela permanecerá e, certamente, outras previsões e novas datas virão como algo esperado e, até certo ponto, ansiado por muitos, nestes tempos tão difíceis nos quais os acontecimentos diários nos deixam tão perplexos.
Mas por que será que o homem comporta-se como se desejasse o fim do mundo? O mundo, ao que parece, é confundido com a realidade. O homem, desse modo, não deseja o fim do seu planeta - apesar de tudo fazer para destruí-lo -, mas o fim da realidade que criou, com coisas boas e outras extremamente desagradáveis.
Entre as desagradáveis está sua decadência moral, ética, política, religiosa, etc. Esta, com efeito, chegou no nível da insuportabilidade. Estamos como que perdidos no meio do lamaçal. Perdidos, resgatamos da memória o que nos foi apresentado como solução para a nossa ruína histórica e cíclica: o fim do mundo com o dilúvio. Deus não acabou com a Terra, mas com a humanidade perversa, corrompida. O mundo, então, não é a Terra, mas o que está dentro de nós: a nossa visão limitada, simplista, egoísta, presa à cadeia espaço/ tempo/ matéria, sobretudo a matéria.
Quando falamos no fim do mundo, estamos de fato reconhecendo as nossas limitações, os nossos erros, a nossa degeneração - coisas contrárias àquele que nos criou e que é pura perfeição. Deus nos criou para ser perfeitos e, dentro dele, não suporta a imperfeição. No fundo, todos nós sabemos disso. Quando desejamos o fim do mundo, estamos, na realidade, reconhecendo o que há de imperfeito e corrupto em nós e desejando seu fim.
No Bhagavad Gita, Krishna diz a Arjuna que, sempre que o bem declina, Deus desce à Terra para restaurá-lo. Não é por outra coisa senão por isso que estamos esperando a segunda vinda de Jesus.
A TRAIÇÃO, MÃE DE TODAS AS FRAQUEZASAna Trajano
O Beijo de Judas, de Giottto de Bondone (Wikipedia) Conta-se que Alvarenga Peixoto ao tomar conhecimento de que fora descoberto como inconfidente, pensou em trair seus companheiros para livrar sua pele. Ao chegar em casa falou de sua intenção para a esposa, Bárbara Heliodora, enfatizando que seria o único meio de salvar sua vida, e de sua família não perder todos os bens, ficando na miséria. A decisão da bela Bárbara foi surpreendente:-"Trair seus companheiros? Nunca! Prefiro a viuvez, a orfandade para os meus filhos, a pobreza, do que te ver entrar para a história como um traidor"-, disse ela, ao que Alvarenga Peixoto teria respondido: “Tens razão, Bárbara! Nunca fui vil, nem covarde.” Ele morreu na prisão e ela terminou pobre e demente.Ambos preferiram tudo isso a sucumbir àquela que talvez seja a raiz de todas as fraquezas humanas: a traição. Todo erro, na verdade, é uma traição. É um trair-se a si mesmo. É trair em si mesmo a possibilidade de crescimento. É trair a vida. É trair a lei universal de ascensão, a que todos nós estamos submetidos. Nós estamos aqui para aprender. Se o mundo é uma escola, a vida é a lição. Bárbara Heliodora entendeu isso.Neste sentido, a confiança nos outros e em nós mesmos é didática; trair a confiança é optar pela ignorância, pela estagnação do processo individual de crescimento. Por entender isso, Judas preferiu a morte. Sabia que, a partir daquele dia, jamais ficaria em paz. O traidor não a conhece, pois sabe que, sobretudo, traiu a si mesmo. Confiança é uma fiança que se oferece a outro, e a nós, e a pior fiança traída é aquela que deixamos de pagar a nós mesmos.Talvez nenhum outro erro decepcione tanto quanto a traição, quando parte daqueles a quem amamos e a quem confiamos a nossa vida, os nossos segredos e o nosso amor. Quando pensamos assim, entendemos perfeitamente o espanto de Júlio César: “Até tu, Brutus?” E a tristeza de Jesus: “Judas, é com um beijo que trais teu mestre?”A traição é tão perversa que, em vários momentos da história, ela está associada à morte, começando por Caim ao matar Abel. Ela é, ao que parece, o primeiro pecado do homem e começou quando Adão e Eva traíram a confiança do próprio Deus. A traição quando não mata, fere gravemente o coração de suas vítimas.
O OLIMPO DOS DEUSES SEGUIDOS
Ana Trajano
Quem já parou para pensar que a boa relação entre eu e o outro depende do reconhecimento da imagem de Deus em nós, de que nele nossas faces são idênticas e nossas digitais divinas também? Somos um!
O que nos separa é a incapacidade de não enxergarmos na nossa face a face do Pai; de não vermos a máscara que, como filhos rebeldes, por orgulho criamos para nos afastarmos d'Ele, e consequentemente um do outro. Essa máscara que chamamos de ego, e que, se deixarmos, embota Deus em nós.
Percebe: O homem que não quer ver Deus em si, adora a si mesmo como deus. Adorando a si não vê o outro como irmão, mas como outro deus, seu rival. A fraternidade deixa de existir, e o mundo, ao invés de espaço de partilha e acolhimento, transforma-se em olimpo onde brigam os deuses.
Julgando-se autossuficiente, nega o Criador e seu amor, e esvaziado do amor divino transforma-se apenas num animal irracional que alimenta-se do orgulho, da ambição, da inveja, da fome de poder, da prepotência…
Se o homem é feito à imagem do seu Criador, elevado pelo ego à categoria de um deus, ele não reconhece no outro a imagem do Pai. Orgulhoso e narcisista, vê apenas a si no seu lago de cristal. O outro é uma ameaça ao reflexo de sua imagem.
O que prevalece é o eu soberano. O que nega a Deus, nega consequentemente a fraternidade entre os homens, e, negada essa irmandade, o outro é apenas um rival indigno de respeito.
Veja o exemplo das redes sociais, nas quais as pessoas não têm irmãos, mas seguidores. Os deuses desse olimpo de seguidos, não seguem os que o seguem, não conhecem suas faces, pois do trono de deuses nos quais se encontram, não podem seguir, apenas ser seguidos
OS PÁSSAROS SEMPRE BUSCAM O CÉU
Ana Trajano
Querido pássaro, a terra natal que te serviu de ninho, acolhe hoje o teu corpo de volta. Nela, ele será plantado, adormecido como uma das incontáveis sementes desse jardim de mistério, cujos segredos só o Jardineiro conhece.
Teu verdadeiro ser, porém, alçou voo, querido pássaro, como que liberto da gaiola, e imagino como deve estar feliz, livre de qualquer fronteira, de qualquer obstáculo que o impeça de buscar as alturas.
Sim, sempre vi em ti um pássaro, um belo pássaro, cujo maior prazer era superar as altitudes conquistadas: aquela montanha seria escalada; aquela floresta,
desbravada; aquelaSua comunhão diária era com a natureza, a mesma que os pássaros conhecem. E sua natureza preferida era a da cidade que escolheu para pousar.
O Rio de Janeiro, fevereiro e março fez tão parte de você, querido pássaro, como fez suas praias, jardins, morros e floresta. Você completou sua paisagem: o pássaro que pairava sobre o habitat escolhido.
Quanta beleza havia em você: a liberdade translúcida no brilho dos seus olhos, cor de mar de verão; a alegria exposta no sorriso ininterrupto; o coração transbordante de amor pela vida.
Que falta você fará, doce e amado pássaro! Daqui, fico imaginando seu voo. Você superou todas as altitudes porque os anjos lhe emprestaram asas. Os pássaros sempre buscam o céu. Você agora o conquistou.
VOCÊ VEM SEGUNDA-FEIRA?
Ana Trajano
Valdemarina. Nunca entendi o nome dela, apesar de sentir nele o mesmo sabor das goiabas maduras que comíamos sentadas nos galhos da goiabeira, instantes nos quais ela esquecia as tristezas da orfandade precoce e permitia-se rir e brincar como a criança que era; apesar de sentir nele também a mesma fisionomia das segundas-feiras que lhe traziam sorridente pelo caminho.
Ela passava sempre às segundas, acompanhada de seu irmão, naquela dolorosa e comovente jornada de mendicância. Duas pobres crianças com o saco de esmola às costas onde iam guardando a caridade de um e outro que lhes encheria a barriga, ou pelo menos amenizaria a fome. Eram órfãos de pai, e a mãe, muito pobre, obrigava-os a pedir pelas estradas, enquanto ela, em casa, cuidava dos filhos menores.
Sempre paravam em nossa casa, onde comiam e depois juntavam-se a nós, a mim e meus irmãos, para brincar. Nós os amávamos e, ansiosos, aguardávamos o dia em que passavam.
A brincadeira que mais gostávamos era subir nas árvores do pomar que ladeava a nossa casa: goiabeiras, cajueiros e mangueiras. Valdemarina tinha sempre uma conversa nova, uma história diferente.
O irmão menor, magrinho e retraído, apenas concordava com o que ela dizia. Havia entre os dois uma cumplicidade que transcendia a coisa física: eram duas almas unidas na pobreza e na dor, dispostas a lutar no palco de angústia e sofrimento com o qual o mundo se apresentava a eles.
Havia algo em Valdemarina que atraía-nos, sobretudo a mim; algo de grande, de majestoso. Sim, na minha pouca idade, eu enxergava por trás daquela menina que também tinha a minha idade, de perninhas finas, rosto pálido e vestidinho de chita, coberto de remendos, uma nobreza que se aproximava a das estórias de heroínas que eu ouvia, ou das jovens santas que minha vó contava. Talvez fosse suas virtudes que se deixavam transparecer a mim. Admirava sua coragem de enfrentar os longos quilômetros percorridos a pé, acompanhada apenas de um menino, menor que ela; admirava sua responsabilidade e altivez. Mesmo no melhor da brincadeira, ela sabia a hora de parar, pois o caminho lhe aguardava, o saco ainda estava vazio e a caridade precisava ser encontrada nas léguas a percorrer. Despedia-se, mamãe lhe dava algum dinheiro e eu sempre perguntava: "Você vem segunda- feira?"
DO SER MULHER NA PANDEMIA
Ana Trajano
Duas comemorações do 8 de Março -2020 e 2021-, feitas em meio a uma triste realidade: a pandemia. Ela trouxe, para cada uma de nós, algo da mulher à antiga. Com as famílias confinadas, fomos obrigadas a viver um pouco das nossas mães e avós. Pelo menos boa parte de nós sabe agora o que é passar os dias dedicando-se exclusivamente com os seus - e fazendo isto arduamente.
Certamente, muitas de nós lembramos das nossas ancestrais esses dias, e quanto poder tinham essas mulheres - aquele poder medido não pelos cargos que exerciam, mas pelo quanto trabalhavam. Nós, mulheres modernas, que dispomos de uma infinidade de eletrodomésticos para facilitar nosso trabalho, quando lançamos um olhar para o passado, não há como não perguntar de onde elas tiravam tanta força para cuidar da casa e dos filhos - lavar, passar, cozinhar, arrumar, fazer lição de casa, etc. Isso era poder na prática, não apenas uma palavra de salto para elevar egos às alturas.
Outro dia vi alguém reclamar que não suportava mais estar em casa com os filhos pequenos, que não via a hora de os colégios voltarem. Fiquei pensando na minha mãe com quatro crianças, sem nenhuma ajuda e obrigada a fazer tudo. Nunca a vi reclamar. De onde ela tirava aquele poder para dar conta do recado? Do seu amor de mãe. Não é que as mães de hoje amem menos. São os tempos, os costumes e as condições que são outros e as obrigam a esse distanciamento dos filhos.
Para ser sincera, entendo aquela pessoa que reclamou. No começo da crise foi muito difícil para mim também, acostumada que estava com as minhas filhas já adultas e o marido fora o dia todo. O trabalho doméstico triplicou. Me vi exausta, mergulhada numa carga de trabalho que não tem hora para terminar. Recorri à lembrança do poder das minhas ancestrais: se elas podiam, eu também vou conseguir.
Afinal, sou mulher e, por natureza, dona desse poder que nos caracteriza.
Ah, e dona da vaidade também. Juro que desconhecia o tamanho da minha, até acordar, me olhar no espelho e ver o rosto mais envelhecido, as rugas que se multiplicaram, os traços que não existiam. Sim, a pandemia envelheceu-me. Envelheceu-me porque sou mulher, sou mãe e esposa e quando algo exige cuidado, ele é triplicado. Como dizia vovó, preocupações trazem rugas. Trouxeram as minhas.
E, diariamente, à medida que os dias avançam e a pandemia não dá sinais de recuo, apenas crescem minhas tarefas e preocupações: a do asseio desmedido com a casa, e o cuidado com os meus para evitar o contágio. Dias estressantes, mas ao final de cada um deles tenho a certeza de que procurei dar o melhor de mim, e isso me gratifica. À minha mãe e a todas minhas ancestrais, obrigada pelas lições de força e poder!
O SOL E OS BEM-TE-VIS
Ana Trajano
Eles acompanham o sol em seu parto de luz e enquanto este se ergue, dourado sobre o mar, eles cantam: bem-te-vi, bem-te-vi… O sol e os bem-te-vis: a luz e o bem, como doação divina.
Ouço a melodia desses minúsculos seres alados e penso: quero aprender com eles a sobreviver da esperança que veem no mundo e nos outros.
Tenho para mim que a esperança não morrerá enquanto existir um bem-te-vi. Eles são a alma de toda esperança, a fé quando esta lhe falta; são seus olhos quando ela, já desesperançada, lança um olhar sobre si mesma ao ouvi-los.
Tudo pode desabar, ruir ao seu redor, mas os bem-te-vis enxergam apenas o lado positivo de tudo, aquele que, apesar de existir, ninguém consegue enxergar.
Bem-te-vi, ou o bem que eu vi, ou em ti vi o bem.
O bem-te-vi é o canto do bem, a certeza da sua vitória; é a paciência de saber esperá-la; é a confiança no tempo de Deus.
Esses dias cinzentos e tristes do nosso tempo ainda podem contar com as cores suaves dos bem-te-vis. Os dias ainda acordam alegres com o seu canto. Como seria bom se aprendêssemos a ser como eles! Quanto desgaste e quanto sofrimento desnecessários seriam evitados!
Aprendamos, com o sol e os bem-te-vis, a amar a tudo e a todos, incondicional e despretensiosamente e, talvez assim, a todos veremos bem e em tudo veremos o bem. Seremos o que Deus quer de nós: luz e bem.
MEU CAULE DE LUZ
A vida, sem você, transformou-se num monótono flutuar,
entre as estrelas- responsáveis pelos elementos para a formação do teu corpo
físico- e a terra onde ele, tranquilo, repousa. Não me falta chão; faltam raízes,
e sem elas flutuo. Assim estou: num caminho aéreo entre dois mundos, deixando
rastros no ar, como folhas de outono, que também perderam seu tronco, seus
galhos, e soltas buscam pernas no vento.O APOCALIPSE NOSSO DE CADA DIA
![]() |
| Dante e Virgílio no Inferno, obra de William-Adolphe Boguereau (Wikipedia) |
BOÉCIO: UMA LUZ NA IDADE MÉDIA
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| A Consolação da Filosfia, de Mattia Preti |
SAUDADE
| Foto: Eduarda Trajano |
Ana Trajano
Cara Clarice,




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Um comentário:
Nossa minha querida amiga,suas crônicas são retratos fieis da vida, de nossos sentimentos e reflexões! Escreve com maestria e profundidade, e espero que escreva, mais e mais, para que tenhamos o prazer de ler suas sabias observações!Um grande abraço de luz!
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