Seja a paz
Ana
Trajano
Você já se sentiu a paz? Isso mesmo:
não em paz, mas a paz. Sei, é estranho falar assim, pois remete a uma ideia de santidade. Mais
estranho ainda quando você sabe que de santo não tem nada. Mas o problema talvez
seja exatamente este: a paz é tão difícil, tão maculada porque a imaginamos de
forma errada: procuramos estar em paz, quando deveríamos ser a paz. Tudo o que
não é a paz, a destrói para nós e em nós. Mas ela só é destruída porque a enxergamos como uma entidade fora de
nós.
Isto é,
perdemos a nossa identidade mais sagrada, a paz, e perdendo-a passamos a vê-la como algo quase
impossível, só próprio dos santos. Ou
seja, um pequeníssimo número de pessoas que ousaram não perder sua identidade.
Para isso brigaram com o mundo sem brigar consigo mesmos, estiveram no mundo
sem se deixar absorver por ele. Em resumo, foram guerreiras da paz porque
sabiam ser ela própria. Entendiam que a
paz só existe quando se é a paz, pois ela não se estabelece, ou se destrói por
si mesma. Ela só é destruída ou estabelecida em nós e a partir de nós.
E a paz aqui passa até mesmo pelo desapego
completo à vida, por nenhum temor da morte, pois estas criaturas entenderam, ou
entendem, que o mundo pode tirar suas vidas, mas jamais matará a paz que elas
são, que representaram, ou representam, pois a paz e suas almas são uma única
essência.
“Se alguém
me matar hoje e eu morrer sem um gemido, aí sim terei sido um verdadeiro
mahatma” (grande alma, em sânscrito). Palavras de Gandhi, 12 horas antes de ser
assassinado, sem esboçar um gemido. Gandhi só conseguiu lutar pela paz no seu
país, livrando-o do jugo dos ingleses, porque descobriu que ele próprio era a
paz e, convicto da sua identidade, jamais se intimidou. A paz, como a alma, é divina, e grande alma é aquela que não nega
sua verdade para agradar ao mundo, ou a uns poucos.
O mundo, na
verdade, é um grande desafio. Estamos a cada segundo sendo desafiados a
assumir, ou negar, aquilo que somos, dependendo do quão conveniente seja para
nós uma ou outra posição. O medo mascara nossas digitais. O temor do conflito
com o mundo, ou com o outro, pode até nos livrar de muitos dissabores, mas não
nos livrará da batalha com nós mesmos. E esta talvez seja a pior. “O que me
assusta não são as ações e os gritos das pessoas más, mas a indiferença e o
silêncio das pessoas boas,” dizia Martin Luther King. O grande dilema, ou a
grande dor, é constatar que, o que silenciamos para o mundo, não conseguimos
silenciar para nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário